28 setembro 2008

Velho Carvalho



O relógio marca 6.
Tempo qu'inda dorme.
O corpo que se recusa
A admitir o fim do sono.
Espreguiçam-se
Os membros outrora imóveis.
São como árvores - velhos carvalhos
De já tão secos pelo tempo
E pelo frio e pelo tédio.
Vão cultivando sulcos profundos,
marcas do tempo que me acorda às 6.
Velho carvalho, oco e resistente,
Vergalhões de aço na madeira inerte
Hão de comparar, nitidamente,
Que a vida rompe num estanque,
E previnir teu fim, teu climatério,
Sem deixar que o vento te arranque
Desse espaço.

O Silêncio da Ausência


Oh, rua que na noite

insone

Me consome os olhos a vagar

no escuro.

Oh, noite em ventos insolentes,

Uivantes arrepios pelas frestas

da janela

Nos mesmos cantos e calçadas

Os mesmos bares, as mesmas caras

E os velhos "bem, voltemos para casa"

Quando já se vai alta a

madrugada

E os intervalos dos carros.

Ao longe passos e

gargalhadas

De um grupo que volta ou vai.

E eu já não lamento mais

O silêncio da tua ausência,

A falta dos teu passos

Acompanhando os meus

descompassados.
Já sigo o rumo incerto de

outras vezes,

Às bordas das sarjetas,
Ao hálito do vinho.

E não há em mim razão

ou choro,

Medo ou

infâmia disciplicente.

Só levo comigo essa dor
insana,

Uma saudade sem medidas

Que me calou e se calou

Eternamente.

27 setembro 2008

A rua dos cataventos (Mario Quintana)




Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

Paul Verlaine




De Verlaine para Arthur Rimbaud

Mortal, anjo e demônio, ou melhor, Rimbaud,
Teu lugar no meu livro é o primeiro, como um prêmio;
Tu que um bobo escritor um dia esculhambou
Achando-te um debochado imberbe, um verme, boêmio.

As espirais de incenso e os acordes do alaúde,
Saúdam tua chegada ao templo da memória,
Onde teu nome esplêndido soará em glória,
Pois me amavas, se preciso, até a plenitude.

Serás para as mulheres, sempre, belo e forte,
De uma beleza assim, agreste e sedutora,
Tão cobiçada quanto desvanecedora!

E a história te erguerá triunfante da morte,
P'ra que, apesar de toda a lama, o mundo veja
Teus pés intactos sobre a cabeça da Inveja!

Tradução de José Machado Sobrinho.

14 setembro 2008

Benção (Charles Baudelaire)

Charles Baudelaire by Gustave Corbert


Quando, por uma lei das supremas potências,
O
Poeta se apresenta à platéia entediada,
Sua mãe, estarrecida e prenhe de insolências,
Pragueja contra Deus, que dela então se apiada:

"Ah! Tivesse eu gerado um ninho de serpentes,
Em vez de amamentar esse aleijão sem graça!
Maldita a noite dos prazeres mais ardentes
Em que meu ventre concebeu minha desgraça!

Pois que entre todas neste mundo fui eleita
Para ser o desgosto de meu triste esposo,
E ao fogo arremessar não posso, qual se deita
Uma carta de amor, esse monstro asqueroso,

Eu farei recair teu ódio que me afronta
Sobre o instrumento vil de tuas maldições,
E este mau ramo hei de torcer de ponta a ponta,
Para que aí não vingue um só de teus botões!"

Ela rumina assim todo o ódio que a envenena,
E, por nada entender dos desígnios eternos,
Ela própria prepara ao fundo da Geena
A pira consagrada aos delitos maternos.

Sob a auréola, porém, de um anjo vigilante,
Inebria-se ao sol o infante deserdado,
E em tudo o que ele come ou bebe a cada instante
Há um gosto de ambrósia e néctar encarnado.

Às nuvens ele fala, aos ventos desafia
E a via-sacra entre canções percorre em festa;
O Espírito que o segue em sua romaria
Chora ao vê-lo feliz como ave da floresta.

Os que ele quer amar o observam com receio,
Ou então, por desprezo à sua estranha paz,
Buscam quem saiba acometê-lo em pleno seio,
E empenham-se em sangrar a fera que ele traz.

Ao pão e ao vinho que lhe servem de repasto
Eis que misturam cinza e pútridos bagaços;
Hipócritas, dizem-lhe o tato ser nefasto,
E se arrependem pó haver cruzado os passos.

Sua mulher nas praças perambula aos gritos:
"Pois se tão bela sou que ele deseja amar-me,
farei tal qual os ídolos dos velhos ritos,
e assim, como eles, quero inteira redourar-me;

E aqui, de joelhos, me embebedarei de incenso,
De nardo e mirra, de iguarias e licores,
Para saber se desse amante tão intenso
Posso usurpar sorrindo os cândidos louvores.

E ao fatigar-me dessas ímpias fantasias,
Sobre ele pousarei a tíbia e férrea mão;
E minhas unhas, como as garras das Harpias,
Hão de abrir um caminho até seu coração.

Como ave tenra que estremece e que palpita,
Ao seio hei de arrancar-lhe o rubro coração,
E, dando rédea à minha besta favorita,
Por terra o deitarei sem dó nem compaixão!"

Ao céu, de onde ele vê de um trono a incandescência,
O Poeta ergue sereno as suas mãos piedosas,
E o fulgurante brilho de sua vidência
Ofusca-lhe o perfil das multidões furiosas:

"Bendito vós, Senhor, que dais o sofrimento,
esse óleo puro que nos purga as imundícias
como o melhor, o mais divino sacramento
e que prepara os fortes às santas delícias!

Eu sei que reservais um lugar para o Poeta
Nas radiantes fileiras das santas Legiões,
E que o convidareis à comunhão secreta
Dos Tronos, das Virtudes, das Dominações.

Bem sei que a dor é nossa dádiva suprema,
Aos pés da qual o inferno e a terra estão dispersos,
E que, para talhar-me um místico diadema,
Forçoso é lhes impor os tempos e universos.

Mas nem as jóias que em Palmira reluziam,
As pérolas do mar, o mais raro diamante,
Engastados por vós, ofuscar poderiam
Este belo diadema etéreo e cintilante;

Pois que ela apenas será feita de luz pura,
Arrancada à matriz dos raios primitivos,
De que os olhos mortais, radiantes de ventura,
Nada mais são que espelhos turvos e cativos!".

Henry Thoreau

A massa nunca se eleva ao padrão do seu melhor membro;
pelo contrário, degrada-se ao nível do pior.

06 setembro 2008

Canto 34 (Walt Whitman)



Agora eu conto
O que eu soube no Texas
Em minha juventude
(não vou contar a tomada de Álamo,
não escapou ninguém para contar
a tomada de Álamo,
aqueles cento e cinqüenta estão mudos
ainda em Álamo):
esta é a história do assassinato
a sangue frio
de quatrocentos e vinte moços.

Em retirada tomaram formação
De um quadrado vazio
Com as bagagens como parapeitos,
Novecentos as vidas do inimigo
Que agora os sitiava,
Nove vezes o que tinham em número
E o preço foi cobrado adiantado,
O coronel deles fora ferido
E a munição havia terminado,
Negociaram capitulação com honra
Papel timbrado e assinado,
Entregaram as armas e marcharam
Prisioneiros de guerra.

Eram o orgulho da raça dos rangers,
Inigualáveis em montaria
Rifles, canções, repastos, galanteios,
Enormes, turbulentos, generosos,
Amáveis e orgulhosos,
Barbudos, peles tostadas de sol,
Trajados à moda descontraída
Dos caçadores,
Nenhum contava mais de trinta anos.

No segundo Domingo de manhã
Foram levantados em grupo
e massacrados:
era uma linda manhã de verão,
a faina começou aí pelas cinco e meia
e às oito estava tudo terminado.

Nenhum se quis sujeitar
À ordem de ajoelhar,
Alguns tentaram inutilmente correr
Feito uns alucinados,
Alguns ficaram inabaláveis em pé,
Alguns poucos tombaram de uma vez
Com tiros na fronte ou no coração,
Os mutilados e desfigurados
ainda cavando o chão,
vivos e mortos estirados juntos
onde eram vistos pelos recém-vindos,
uns meio mortos tentavam sair de rastos
e eram então despachados a golpes de baionetas
ou esmagados a coronhas de espingardas,
um jovem com não mais que dezessete anos
agarrou-se ao algoz
até virem dois outros afrouxá-lo
e ficaram os três todos rasgados
e cobertos do sangue do rapaz.

Às onze em ponto
Começou a incineração dos corpos.
Eis aí a história do assassinato
Dos quatrocentos e vinte homens moços.

Contradição


"Eu me contradigo ?

Pois muito bem, eu me contradigo,
Sou amplo, contenho multidões".

Cântico VI (Cecília Meireles)


Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acaba todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

East Coker (T.S.Eliot)

(trecho inicial da parte III)


O escuro escuro escuro. Todos mergulham no escuro,
Nos vazios espaços interestelares, no vazio que o
[ vazio inunda,
Capitães, banqueiros, eminentes homens de letras,
Generosos mecenas de arte, estadistas e
[ governantes,
Ilustres funcionários públicos, presidentes de vários
[ comitês,
Magnatas da indústria e pequenos empreiteiros, todos
[ mergulham no escuro,
E escuros o Sol e a Lua, o Almanaque de Gotha,
A Gazeta da Bolsa, o Anuário dos Diretores,
E frio o sentido e perdido o fundamento da ação,
E todos os seguimos no silente funeral,
Funeral de ninguém, pois a ninguém há que enterrar.
Eu disse à minh'alma, fica tranqüila, e deixa baixar o
[ escuro sobre ti,
Pois que aí tudo será treva divina. Como num teatro,
As luzes se apagam para a troca de cenários
Com um côncavo ribombo de asas, com um movimento de treva sobre treva,
E sabemos que as colinas e as árvores, o distante
[ panorama
E a soberba fachada altiva estão sendo arrastados
[ para longe
— Ou quando, no metrô, um trem se demora entre
[ duas estações
E as conversas se animam e lentamente no vazio
[ tombam
E vês por detrás de cada rosto aprofundar-se o vazio
[ mental
Que semeia apenas o crescente terror de nada haver
[ em que pensar;
Ou quando, sob o éter, o pensamento é consciente,
[ mas consciente de nada —
Eu disse à minh'alma, fica tranqüila, e espera sem
[ esperança
Pois a esperança seria esperar pelo equívoco; espera
[ sem amor
Pois o amor seria amar o equívoco; contudo ainda
[ há fé
Mas a fé, o amor e a esperança permanecem todos à
[ espera.
Espera sem pensar, pois que pronta não estás para
[ pensar:
Assim a treva em luz se tornará, e em dança há-de o
[ repouso se tornar.