22 julho 2010

Do "Sermão sobre a Verdade da Religião Católica"



"Sermão sobre a Verdade da Religião Católica" que o Padre José Agostinho Macedo pregou na Quaresma de 1817, na Igreja de Nossa Senhora dos Mártires de Lisboa (foto).

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Em todos os tempos desagradou a muitos a Religião Católica, não só porque é muito sublime o que propõe para crer, mas porque é muito dificultoso o que propõe para praticar. Ainda em nossos dias muitos dos bárbaros não têm dificuldade em acreditar nossos mistérios. E como a poderiam ter, se cada um deles em suas seitas acredita coisas tão estranhas e tão repugnantes, que tem mais que vencer em acreditar as suas loucuras que as nossas verdades? O seu trabalho consiste em sujeitar-se às nossas leis. Estas têm rebelado à Igreja cem nações, e conservam ainda muitos povos na infidelidade. Uns se declaram contra a penitência como um peso muito gravoso, outros contra o nosso culto como coisa muito supersticiosa, outros contra a castidade como um preceito muito difícil. Mas que conseguiram? Nada mais que mostrar a depravação dos seus corações sem alterar a pureza da nossa Religião. Por mais esforços que hajam feito as paixões humanas, não puderam ainda abolir uma só Lei no Código da Religião. Que digo eu abolir? Não puderam adoçá-las, ou temperá-las na mais pequena parte. Depois de tantos e tantos séculos, com tantos e tantos inimigos, cada ápice do Evangelho conserva ainda todo o seu rigor. Aquele sacrossanto jugo que trouxeram os Apóstolos, é o mesmo a que ainda submetemos o nosso pescoço, sem que se torne mais ligeiro, ou pelo tempo que estraga todas as coisas, ou pela violência que as rompe. Muito cumpria à humana fraqueza alargar os caminhos do Céu e dilatar-lhe algum passo mais. Muito cumpria que as portas do Paraíso fossem menos apertadas. Mas não, estas são de bronze, não se podem alargar mais. Embora se quebrantem muito os divinos preceitos, todos confessam que eles obrigam. Não é o homem casto, mas conhece que o deve ser; cometem-se delitos, mas sentem-se remorsos; e ainda que se obre contra a Lei, a Lei não dorme, mas grita, e chama a seu tribunal os transgressores.

Mas esta liberdade de transgredir a Lei, é o último, e talvez o maior sinal de que Deus assiste à sua Religião, pois a faz triunfar da depravação dos seus mesmos sequazes, inimigos tanto mais formidáveis quanto são mais ocultos e mais domésticos. Sou obrigado a falar das nossas ignomínias e me envergonho, que devendo fazer a resenha das palmas alcançadas pela Religião em suas vitórias, deva por necessidade encontrar-me com os nossos despojos. Eu o sei, mas não imaginava ler entre os títulos dos vencidos também o nosso nome. Mas é assim, triunfa a Religião de nós, sustentando-nos contra nós, não obstante a guerra terrível que nós lhe fazemos com os nossos vícios. À vista deles, quem não diria não ser possível que dure uma Religião contra a qual se revoltam os seus mesmos filhos? Observai como se vive nas cidades mais católicas, como em Lisboa se vive. Com quanta facilidade derramam aqui uns o sangue dos outros! Quantas inimizades há entre os particulares, quantas discórdias nas famílias! Que licença e devassidão nos mancebos! Que avareza nos velhos! Que injustiças nos tribunais, que violências nos soldados, que prepotências nos nobres, que enganos nos plebeus, que luxo, que vaidade, que liberdade nas mulheres! Se Deus não tivesse aqui deixado algumas almas justas, semente e relíquia dos séculos santos, seria esta cidade em tudo semelhante às cidades do paganismo. Quantos entre os gentios, porque nós vivemos com eles na Ásia, na África e na América, recusam crer como nós? Eis aqui os danos que causam os nossos vícios à Religião. O infiel não se resolve a abraçá-la, o fiel a perde. Não se alistam debaixo das bandeiras do Deus de Israel muitas tropas auxiliares que se alistariam, e aquelas que seguem estas bandeiras fazem quanto podem por destruir seu campo, abater seus estandartes e fazer retroceder a Arca Santa, que deviam defender e guardar! Tropas rebeldes, debalde vos afadigais! Os arraiais de Deus devem subsistir até à consumação dos séculos. Aquela Arca mística da Aliança em que se conserva a sua Lei e os seus mistérios, ainda que ameace cair, não cairá jamais. Não há necessidade de mãos profanas para a sustentar, Deus com a sua dextra impedirá a sua queda. Sua omnipotência a conservará firme entre os combates e fará ver que esta firmeza não pode ser senão uma impressão do seus braço divino, o qual, não satisfeito de autenticar a sua Religião com a virtudes dos milagres com que a promulgou por todo o mundo, com a efusão do sangue em que a sustentou contra os tiranos, com a força do saber que a sustentou contra os hereges, a autentica finalmente com o nosso viver depravado, e faz servir à sua firmeza os nossos mesmos pecados.

Fonte: http://abestaesfolada.blogspot.com/

16 julho 2010

Os Arlequins - Sátira (Machado de Assis)

                  André Derain, c.1925


Musa, depõe a lira!
Cantos de amor, cantos de glória esquece!
Novo assunto aparece
Que o gênio move e a indignação inspira.
Esta esfera é mais vasta,
E vence a letra nova a letra antiga!
Musa, toma a vergasta,
E os arlequins fustiga!

Como aos olhos de Roma,
— Cadáver do que foi, pávido império
De Caio e de Tibério, —
O filho de Agripina ousado assoma;
E a lira sobraçando,
Ante o povo idiota e amedrontado,
Pedia, ameaçando,
O aplauso acostumado;

E o povo que beijava
Outrora ao deus Calígula o vestido,
De novo submetido
Ao régio saltimbanco o aplauso dava.
E tu, tu não te abrias,
Ó céu de Roma, à cena degradante!
E tu, tu não caías,
Ó raio chamejante!

Tal na história que passa
Neste de luzes século famoso,
O engenho portentoso
Sabe iludir a néscia populaça;
Não busca o mal tecido
Canto de outrora; a moderna insolência
Não encanta o ouvido,
Fascina a consciência!

Vede; o aspecto vistoso,
O olhar seguro, altivo e penetrante,
E certo ar arrogante
Que impõe com aparências de assombroso;
Não vacila, não tomba,
Caminha sobre a corda firme e alerta:
Tem consigo a maromba
E a ovação é certa.

Tamanha gentileza,
Tal segurança, ostentação tão grande,
A multidão expande
Com ares de legítima grandeza.
O gosto pervertido
Acha o sublime neste abatimento,
E dá-lhe agradecido
O louro e o monumento.

Do saber, da virtude,
Logra fazer, em prêmio dos trabalhos,
Um manto de retalhos
Que a consciência universal ilude.
Não cora, não se peja
Do papel, nem da máscara indecente,
E ainda inspira inveja
Esta glória insolente!

Não são contrastes novos;
Já vem de longe; e de remotos dias
Tornam em cinzas frias
O amor da pátria e as ilusões dos povos.
Torpe ambição sem peias
De mocidade em mocidade corre,
E o culto das idéias
Treme, convulsa e morre.

Que sonho apetecido
Leva o ânimo vil a tais empresas?
O sonho das baixezas:
Um fumo que se esvai e um vão ruído;
Uma sombra ilusória
Que a turba adora ignorante e rude;
E a esta infausta glória
Imola-se a virtude.

A tão estranha liça
Chega a hora por fim do encerramento,
E lá soa o momento
Em que reluz a espada da justiça.
Então, musa da história,
Abres o grande livro, e sem detença
À envilecida glória
Fulminas a sentença.

(Machado de Assis, in 'Crisálidas')

05 julho 2010

Cinzentos (Florbela Espanca)






Poeiras de crepúsculos cinzentos,
Lindas rendas velhinhas, em pedaços,
Prendem-se aos meus cabelos, aos meus braços
Como brancos fantasmas, sonolentos...

Monges soturnos deslizando lentos,
Devagarinho, em mist'riosos passos...
Perde-se a luz em lânguidos cansaços...
Ergue-se a minha cruz dos desalentos!

Poeiras de crepúsculos tristonhos,
Lembram-me o fumo leve dos meus sonhos,
A névoa das saudades que deixaste!

Hora em que o teu olhar me deslumbrou...
Hora em que a tua boca me beijou...
Hora em que fumo e névoa te tornaste...

Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"

O Assinalado (Cruz e Souza)



Tu és o louco da imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A Terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te n’ela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu’alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco...

Na Natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!

04 julho 2010

Incontentado (Olavo Bilac)

Paixão sem grita, amor sem agonia,
Que não oprime nem magoa o peito,
Que nada mais do que possui queria,
E com tão pouco vive satisfeito.

Amor, que os exageros repudia,
Misturado de estima e de respeito,
E, tirando das mágoas alegria,
Fica farto, ficando sem proveito.

Viva sempre a paixão que me consome,
Sem uma queixa, sem um só lamento!
Arda sempre este amor que desanimas!

Eu eu tenha sempre, ao murmurar teu nome,
O coração, malgrado o sofrimento,
Como um rosal desabrochado em rimas.


(Olavo Bilac, in "Poesias")

O Asco da Imprensa (Charles Baudelaire)

É impossível percorrer uma qualquer gazeta, seja de que dia for, ou de que mês, ou de que ano, sem aí encontrar, em cada linha, os sinais da perversidade humana mais espantosa, ao mesmo tempo que as presunções mais surpreendentes de probidade, de bondade, de caridade, a as afirmações mais descaradas, relativas ao progresso e à civilização.

Qualquer jornal, da primeira linha à última, não passa de um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, impudicícias, torturas, crimes dos príncipes, crimes das nações, crimes dos particulares, uma embriaguez de atrocidade universal.

E é com este repugnante aperitivo que o homem civilizado acompanha a sua refeição de todas as manhãs. Tudo, neste mundo, transpira o crime: o jornal, a muralha e o rosto do homem.

Não compreendo que uma mão pura possa tocar num jornal sem uma convulsão de asco.

(Charles Baudelaire, in "Diário Íntimo")

03 julho 2010

Maledicência - Não fales mal de ninguém.

Toda pessoa não suficientemente realizada em si mesma tem a instintiva tendência de falar mal dos outros.

Qual a razão última dessa mania de maledicência?

É um complexo de inferioridade unido a um desejo de superioridade.

Diminuir o valor dos outros dá-nos a grata ilusão de aumentar o nosso valor próprio.

A imensa maioria dos homens não está em condições de medir o seu valor por si mesma. Necessita medir o seu próprio valor pelo desvalor dos outros.

Esses homens julgam necessário apagar as luzes alheias a fim de fazerem brilhar mais intensamente a sua própria luz.

São como vaga-lumes que não podem luzir senão por entre as trevas da noite, porque a luz das suas lanternas fosfóreas é muito fraca.

Quem tem bastante luz própria não necessita apagar ou diminuir as luzes dos outros para poder brilhar.

Quem tem valor real em si mesmo não necessita medir o seu valor pelo desvalor dos outros.

Quem tem vigorosa saúde espiritual não necessita chamar de doentes os outros para gozar a consciência da saúde própria.

As nossas reuniões sociais, os nossos bate-papos são, em geral, academias de maledicência.

Falar mal das pessoas, das coisas alheias é um prazer tão sutil e sedutor – algo parecido com whisky, gin ou cocaína – que uma pessoa de saúde moral precária facilmente sucumbe a essa epidemia.

A palavra é instrumento valioso para o intercâmbio entre os homens. Ela, porém, nem sempre tem sido utilizada devidamente.

Poucos são os homens que se valem desse precioso recurso para construir esperanças, balsamizar dores e traçar rotas seguras.

Fala-se muito por falar, para "matar tempo". A palavra, não poucas vezes, converte-se em estilete da impiedade, em lâmina da maledicência e em bisturi da revolta.

Semelhantes a gotas de luz, as boas palavras dirigem conflitos e resolvem dificuldades.

Falando, espíritos missionários reformularam os alicerces do pensamento humano.

Guerras e planos de paz sofrem a poderosa influência da palavra.

Há quem pronuncie palavras doces, com lábios encharcados pelo fel.

Há aqueles que falam meigamente, cheios de ira e ódio. São enfermos em demorado processo de reajuste.

Portanto, cabe às pessoas lúcidas e de bom senso, não dar ensejo para que o veneno da maledicência se alastre, infelicitando e destruindo vidas.

Pense nisso!

Desculpemos a fragilidade alheia, lembrando-nos das nossas próprias fraquezas.

Evitemos a censura.

A maledicência começa na palavra do reproche inoportuno.

Se desejamos educar, reparar erros, não os abordemos estando o responsável ausente.

Toda a palavra torpe, como qualquer censura contumaz, faz-se hábito negativo que culmina por envilecer o caráter de quem com isso se compraz.

Enriqueçamos o coração de amor e banhemos a mente com as luzes da misericórdia divina.

Porque, de acordo com o Evangelho de Lucas, "a boca fala do que está cheio o coração".

(Texto extraído do livro "A Essência da Amizade" – Humberto Rohden* – EditoraMartin Claret).