11 outubro 2008

O Movimento das Estrelas


A luz entra fosca e à força
Entre as ondas que me acordam
A contragosto sobre as conchas
Quando cismo e durmo em plena praia
Vendo o brilho sobre os bancos de areia
Das espumas candeias do mar revolto.
Aguardam por entre elas tantas lendas -
Piratas, cem fragatas e sereias -
Que nadam no recôndito daquela enseada,
Enfileiradas em meus sonhos que se vão
Embalados pelo vento-canto lá da aldeia.
Aqui sopra um vento sonoro nas palmeiras
Quando a lua entra por entre as folhas negras.
O farfalhar rasteiro da palha seca,
A duna a se mover pela madrugada inteira
Como o arrasta-pé no baile,
Como o chocalhar da cascavel ligeira.
E quando a noite é assim, meu bem, eu caço estrelas
Por um céu de poema de Bilac.
Caço as grandes, as brilhantes, as pequenas,
E risco com o dedo em riste a Via Láctea.
Nas manhãs seguintes,
A brisa quente varre a varanda da casa
Repleta de ócio depois do almoço,
E já não sei se é ela ou o leque de minha avó
Que move a velha cadeira de balanço.
Como nunca soube se era o vento lá na praia,
Aquele vento nas ondas, nas folhas, na duna,
Que também movia as estrelas no céu.

06 outubro 2008

Remorso

Eu preciso escrever!
Escrever sobre essa dor,
Mas não somente.
Essa dor vívida, pungente;
Essa chaga em brasa me queimando.
Dor lancinante, vigorosa,
Sentida em verso e prosa
Que se agarrou ao meu peito
E cravou suas oito garras negras
Do arrependimento.

Eu preciso escrever na dor certeira,
Flecha ligeira
Que meu corpo transpassou.
Na dor moléstia grave,
Essa doença,
Essa ausência,
Razão do meu abatimento.
Sigo andando pelas ruas,
Chagas abertas,
Remoendo a dor que inunda,
A dor funesta,
A dor da morte prematura
Feito esse amor inerte e frio
Preso ao coração por um pavio -
Um bloco bruto de granito negro.
E me debato pela escuridão,
Moribundo insone,
Lutando contra a minha própria alma
Uma batalha que já sei perdida.
Mas fugir no som do mundo
Para sufocar essa saudade
De nada adianta, pois
Uma dor renascida me invade
Nas madrugadas longas
A gritar teu nome.

28 setembro 2008

Velho Carvalho



O relógio marca 6.
Tempo qu'inda dorme.
O corpo que se recusa
A admitir o fim do sono.
Espreguiçam-se
Os membros outrora imóveis.
São como árvores - velhos carvalhos
De já tão secos pelo tempo
E pelo frio e pelo tédio.
Vão cultivando sulcos profundos,
marcas do tempo que me acorda às 6.
Velho carvalho, oco e resistente,
Vergalhões de aço na madeira inerte
Hão de comparar, nitidamente,
Que a vida rompe num estanque,
E previnir teu fim, teu climatério,
Sem deixar que o vento te arranque
Desse espaço.

O Silêncio da Ausência


Oh, rua que na noite

insone

Me consome os olhos a vagar

no escuro.

Oh, noite em ventos insolentes,

Uivantes arrepios pelas frestas

da janela

Nos mesmos cantos e calçadas

Os mesmos bares, as mesmas caras

E os velhos "bem, voltemos para casa"

Quando já se vai alta a

madrugada

E os intervalos dos carros.

Ao longe passos e

gargalhadas

De um grupo que volta ou vai.

E eu já não lamento mais

O silêncio da tua ausência,

A falta dos teu passos

Acompanhando os meus

descompassados.
Já sigo o rumo incerto de

outras vezes,

Às bordas das sarjetas,
Ao hálito do vinho.

E não há em mim razão

ou choro,

Medo ou

infâmia disciplicente.

Só levo comigo essa dor
insana,

Uma saudade sem medidas

Que me calou e se calou

Eternamente.

27 setembro 2008

A rua dos cataventos (Mario Quintana)




Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

Paul Verlaine




De Verlaine para Arthur Rimbaud

Mortal, anjo e demônio, ou melhor, Rimbaud,
Teu lugar no meu livro é o primeiro, como um prêmio;
Tu que um bobo escritor um dia esculhambou
Achando-te um debochado imberbe, um verme, boêmio.

As espirais de incenso e os acordes do alaúde,
Saúdam tua chegada ao templo da memória,
Onde teu nome esplêndido soará em glória,
Pois me amavas, se preciso, até a plenitude.

Serás para as mulheres, sempre, belo e forte,
De uma beleza assim, agreste e sedutora,
Tão cobiçada quanto desvanecedora!

E a história te erguerá triunfante da morte,
P'ra que, apesar de toda a lama, o mundo veja
Teus pés intactos sobre a cabeça da Inveja!

Tradução de José Machado Sobrinho.

14 setembro 2008

Benção (Charles Baudelaire)

Charles Baudelaire by Gustave Corbert


Quando, por uma lei das supremas potências,
O
Poeta se apresenta à platéia entediada,
Sua mãe, estarrecida e prenhe de insolências,
Pragueja contra Deus, que dela então se apiada:

"Ah! Tivesse eu gerado um ninho de serpentes,
Em vez de amamentar esse aleijão sem graça!
Maldita a noite dos prazeres mais ardentes
Em que meu ventre concebeu minha desgraça!

Pois que entre todas neste mundo fui eleita
Para ser o desgosto de meu triste esposo,
E ao fogo arremessar não posso, qual se deita
Uma carta de amor, esse monstro asqueroso,

Eu farei recair teu ódio que me afronta
Sobre o instrumento vil de tuas maldições,
E este mau ramo hei de torcer de ponta a ponta,
Para que aí não vingue um só de teus botões!"

Ela rumina assim todo o ódio que a envenena,
E, por nada entender dos desígnios eternos,
Ela própria prepara ao fundo da Geena
A pira consagrada aos delitos maternos.

Sob a auréola, porém, de um anjo vigilante,
Inebria-se ao sol o infante deserdado,
E em tudo o que ele come ou bebe a cada instante
Há um gosto de ambrósia e néctar encarnado.

Às nuvens ele fala, aos ventos desafia
E a via-sacra entre canções percorre em festa;
O Espírito que o segue em sua romaria
Chora ao vê-lo feliz como ave da floresta.

Os que ele quer amar o observam com receio,
Ou então, por desprezo à sua estranha paz,
Buscam quem saiba acometê-lo em pleno seio,
E empenham-se em sangrar a fera que ele traz.

Ao pão e ao vinho que lhe servem de repasto
Eis que misturam cinza e pútridos bagaços;
Hipócritas, dizem-lhe o tato ser nefasto,
E se arrependem pó haver cruzado os passos.

Sua mulher nas praças perambula aos gritos:
"Pois se tão bela sou que ele deseja amar-me,
farei tal qual os ídolos dos velhos ritos,
e assim, como eles, quero inteira redourar-me;

E aqui, de joelhos, me embebedarei de incenso,
De nardo e mirra, de iguarias e licores,
Para saber se desse amante tão intenso
Posso usurpar sorrindo os cândidos louvores.

E ao fatigar-me dessas ímpias fantasias,
Sobre ele pousarei a tíbia e férrea mão;
E minhas unhas, como as garras das Harpias,
Hão de abrir um caminho até seu coração.

Como ave tenra que estremece e que palpita,
Ao seio hei de arrancar-lhe o rubro coração,
E, dando rédea à minha besta favorita,
Por terra o deitarei sem dó nem compaixão!"

Ao céu, de onde ele vê de um trono a incandescência,
O Poeta ergue sereno as suas mãos piedosas,
E o fulgurante brilho de sua vidência
Ofusca-lhe o perfil das multidões furiosas:

"Bendito vós, Senhor, que dais o sofrimento,
esse óleo puro que nos purga as imundícias
como o melhor, o mais divino sacramento
e que prepara os fortes às santas delícias!

Eu sei que reservais um lugar para o Poeta
Nas radiantes fileiras das santas Legiões,
E que o convidareis à comunhão secreta
Dos Tronos, das Virtudes, das Dominações.

Bem sei que a dor é nossa dádiva suprema,
Aos pés da qual o inferno e a terra estão dispersos,
E que, para talhar-me um místico diadema,
Forçoso é lhes impor os tempos e universos.

Mas nem as jóias que em Palmira reluziam,
As pérolas do mar, o mais raro diamante,
Engastados por vós, ofuscar poderiam
Este belo diadema etéreo e cintilante;

Pois que ela apenas será feita de luz pura,
Arrancada à matriz dos raios primitivos,
De que os olhos mortais, radiantes de ventura,
Nada mais são que espelhos turvos e cativos!".

Henry Thoreau

A massa nunca se eleva ao padrão do seu melhor membro;
pelo contrário, degrada-se ao nível do pior.

06 setembro 2008

Canto 34 (Walt Whitman)



Agora eu conto
O que eu soube no Texas
Em minha juventude
(não vou contar a tomada de Álamo,
não escapou ninguém para contar
a tomada de Álamo,
aqueles cento e cinqüenta estão mudos
ainda em Álamo):
esta é a história do assassinato
a sangue frio
de quatrocentos e vinte moços.

Em retirada tomaram formação
De um quadrado vazio
Com as bagagens como parapeitos,
Novecentos as vidas do inimigo
Que agora os sitiava,
Nove vezes o que tinham em número
E o preço foi cobrado adiantado,
O coronel deles fora ferido
E a munição havia terminado,
Negociaram capitulação com honra
Papel timbrado e assinado,
Entregaram as armas e marcharam
Prisioneiros de guerra.

Eram o orgulho da raça dos rangers,
Inigualáveis em montaria
Rifles, canções, repastos, galanteios,
Enormes, turbulentos, generosos,
Amáveis e orgulhosos,
Barbudos, peles tostadas de sol,
Trajados à moda descontraída
Dos caçadores,
Nenhum contava mais de trinta anos.

No segundo Domingo de manhã
Foram levantados em grupo
e massacrados:
era uma linda manhã de verão,
a faina começou aí pelas cinco e meia
e às oito estava tudo terminado.

Nenhum se quis sujeitar
À ordem de ajoelhar,
Alguns tentaram inutilmente correr
Feito uns alucinados,
Alguns ficaram inabaláveis em pé,
Alguns poucos tombaram de uma vez
Com tiros na fronte ou no coração,
Os mutilados e desfigurados
ainda cavando o chão,
vivos e mortos estirados juntos
onde eram vistos pelos recém-vindos,
uns meio mortos tentavam sair de rastos
e eram então despachados a golpes de baionetas
ou esmagados a coronhas de espingardas,
um jovem com não mais que dezessete anos
agarrou-se ao algoz
até virem dois outros afrouxá-lo
e ficaram os três todos rasgados
e cobertos do sangue do rapaz.

Às onze em ponto
Começou a incineração dos corpos.
Eis aí a história do assassinato
Dos quatrocentos e vinte homens moços.

Contradição


"Eu me contradigo ?

Pois muito bem, eu me contradigo,
Sou amplo, contenho multidões".

Cântico VI (Cecília Meireles)


Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acaba todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

East Coker (T.S.Eliot)

(trecho inicial da parte III)


O escuro escuro escuro. Todos mergulham no escuro,
Nos vazios espaços interestelares, no vazio que o
[ vazio inunda,
Capitães, banqueiros, eminentes homens de letras,
Generosos mecenas de arte, estadistas e
[ governantes,
Ilustres funcionários públicos, presidentes de vários
[ comitês,
Magnatas da indústria e pequenos empreiteiros, todos
[ mergulham no escuro,
E escuros o Sol e a Lua, o Almanaque de Gotha,
A Gazeta da Bolsa, o Anuário dos Diretores,
E frio o sentido e perdido o fundamento da ação,
E todos os seguimos no silente funeral,
Funeral de ninguém, pois a ninguém há que enterrar.
Eu disse à minh'alma, fica tranqüila, e deixa baixar o
[ escuro sobre ti,
Pois que aí tudo será treva divina. Como num teatro,
As luzes se apagam para a troca de cenários
Com um côncavo ribombo de asas, com um movimento de treva sobre treva,
E sabemos que as colinas e as árvores, o distante
[ panorama
E a soberba fachada altiva estão sendo arrastados
[ para longe
— Ou quando, no metrô, um trem se demora entre
[ duas estações
E as conversas se animam e lentamente no vazio
[ tombam
E vês por detrás de cada rosto aprofundar-se o vazio
[ mental
Que semeia apenas o crescente terror de nada haver
[ em que pensar;
Ou quando, sob o éter, o pensamento é consciente,
[ mas consciente de nada —
Eu disse à minh'alma, fica tranqüila, e espera sem
[ esperança
Pois a esperança seria esperar pelo equívoco; espera
[ sem amor
Pois o amor seria amar o equívoco; contudo ainda
[ há fé
Mas a fé, o amor e a esperança permanecem todos à
[ espera.
Espera sem pensar, pois que pronta não estás para
[ pensar:
Assim a treva em luz se tornará, e em dança há-de o
[ repouso se tornar.

27 agosto 2008

Janela das Lágrimas


Para lá dos montes afastados havia outro mundo, um mundo temeroso
GRACILIANO RAMOS

Deixei a luz fosca daquele luar
Na curva do rio que embalava meu sono.
Na esteira de estreitas estradas
Pisei as folhas cadentes do outono.

Deixei um mundo sem paz e sem dono,
E meus pés, levantando a poeira,
Deixaram um choro pungido
Sob um teto sem eira e nem beira.

Pra trás, as velhas casas da aldeia,
As poucas taipas caiadas de branco.
Levei comigo uma dor escondida
Pelo rio sem calado e barranco.

E o rapaz daquele desejo franco
Seguiu a pintar sua nova aquarela
Sem lembrar das lânguidas lágrimas
Debruçadas em uma seca janela.

Nem se voltou ao cruzar a capela;
Afastado da luz de seus olhos castanhos,
E levando nos dele só um opáco vazio
Sobre um peito marcado de lanhos.

Se da janela, voltada aos rebanhos,
Das amargas lágrimas brotar a semente
Da saudade daquele amor que se foi,
Eu peço ao meu Deus tão somente

Que a dor desse corte se ausente,
E que a flor que secou por meus planos,
Floresça na terra frondosa,
Diferente da lívida rosa dos últimos anos.


22 agosto 2008

A Folha Seca


Se hoje oscilo como a folha morta
Que do galho pendeu e se perdeu
Em rodamoinhos poeirentos,
Em espirais nos lixos de um beco.
Se tudo em mim é confuso
E o meu coração nada sente,
E minha mente não se decide
Entre a calma e o tumulto.
Se minha sede não se esgota
E o medo ronda a minha porta
Num temerário “é o fim de tudo”.
Se minh’alma anda aos tropeços,
Aos soluços num choro entrecortado
Que sem palavras me deixam mudo,
Caminhando, pelas noites, sem paz,
Perseguindo uma ilusória alvorada.
Se é de frio que me cortam
As lâminas de uma solidão povoada
Ou se são tolices e nada mais.
Quem se importa?
Os que não se importam comigo partiram,
E se os que me importam voltassem
E me dessem o diamante de seus olhares,
Ainda assim eu seria a folha agarrada ao galho.
Ao galho seco da árvore, da vida,
Aguardando o vento derradeiro
Que me libertaria pelos ares.

11 agosto 2008

Infância e Temporal


“Menino à Janela” – Murillo, Galeria Nacional de Londres



Grades de ferro e temporal.
E eu olhava o mundo da janela
Embaçada pela minha respiração.
Lá fora, o céu cinzento.
Lá dentro, solidão de menino
Vendo as pessoas correndo da chuva,
Tentando um abrigo sob as marquises.
Quanta tolice!, eu pensava...
Quando o que eu mais queria
Era correr com o vento.
E a praia logo ali como um convite,
E o mar em ondas me chamando,
Sucessivas vezes quebrando
Meu nome e sobrenome sobre as pedras.
Mas eu ali, preso e casto, pois
Nem uma gota de orvalho maculara
O desejo por detrás daquelas grades.
Riscos de fogo pelo céu invadem,
E conto o tempo entre clarões e trovões,
Agarrado ao leme do meu návio-janela
Mãe, solta-me na chuva, por favor.
Ser criança é um temporal de fim de tarde...
Imaginação que urge e arde,
E quando se dá conta já passou.

10 agosto 2008

Pai

O que eu diria ao meu pai no dia de hoje
Se em tantos anos nada nos falamos,
Se em tanto tempo nada encontramos
Que nos aproximasse como pai e filho?
E nesse dia o que eu daria a ele
Se nunca soube de seus gostos ou os livros que lia,
Se nunca vi seu pranto ou o motivo da alegria?
Ele que nunca viu meus presentes da escola.
Eu que nem lembro se os fiz um dia.
Ele que nunca viu meu choro ou medo ou frio.
Eu que nunca ouvi de sua voz bronca ou euforia.
Ele que por toda minha vida passou calado.
Eu que por dentro tremia sem entender o porquê.
E nesse dia que encontra em festa
Famílias inteiras e mesmo famílias partidas,
Eu penso no pai que nem sei se realmente tive,
E busco a lágrima que não rolou dos meus olhos

E o soluço que não brotou no meu peito
Pelo pai que se foi como se nunca tivesse chegado.
Sem saudades nem mágoas,
Eu penso na minha vida, para ele perdida,
Por nunca ter estado ao meu lado.

06 agosto 2008

Campos dos Goytacazes


Nem sabes mais como me encontro agora
Nesses tempos tortos em que no mundo afora
Tantos vagam no tempo sem lembrar memórias,
Doces ou saudosas passagens simplórias.
Chama-me agora pelo nome que bem queiras.
São fagulhas soltas, cinzas em poeiras
Que voam cintilando pelos céus de novembro,
Cruzando estradas que hoje nem me lembro,
Mas que sempre estiveram sob meus pés de criança.
Recordações, campos amplos, ampla lembrança.
Do cheiro doce da cana espremida,
Do açúcar, dos treminhões, da velha ermida
Do caminhar a beira da estrada
Ás orações de domingo à madrugada.
São sons de pássaros, estridentes pequeninos.
São sons de gritos, algazarra de meninos,
Que ouço todos no espaço do meu quarto,
Enquanto conto contas, farto
Desses dias que já se vão iguais
Sem poesia, infrutíferos, banais.
E se agora, ao rever esses barrancos,
De um gado enfileirado em pontos brancos,
Voltarem aqueles sonhos incapazes?
É só pra ver de novo os amplos Goytazes,
Os campos verdes debruçados na cidade
Que eu amei em uma outra idade.

Poesia VII

Deus, que nos fizeste mortais,
porque é que nos deste a sede
de eternidade de que é feito o poeta?

Luis Cernuda

Poesia VI

"O historiador e o poeta não se distinguem um do outro pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso. Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido."

(Aristóteles)

05 agosto 2008

Amor Imperativo


Sei que no início era o Verbo
Num crescente ritmo constante,
Antes do futuro e desse instante,
Nascendo do passado que herdo.

Sabes também que não te espero
Cruzar por um caminho mais distante,
Enfrentar o frio, fio de prata cortante,
E seguir o rumo que eu mais quero.

E esse nosso amar-amei-amamos,
Verbo que tantas vezes conjugamos
No presente e pretérito do indicativo,

Guardado no peito, e que desta feita,
Sempre te encontrou mais-que-perfeita,
Continua me achando imperativo.

04 agosto 2008

Caninos



Em louca hora eis que se atravessa
Em seu caminho tão perigosa fera,
A farejar o mundo, rasteiro e em pressa,
Riscando o chão com o elo que a acolera.

E vai bufando, a baba nos caninos,
Sem sentimento ou pena ou dor.
Se põe a brincar entre os meninos;
Fera obtusa que, em seu fétido odor,

Escarnece desse sangue de inocentes
E mastiga os valores mais humanos
Em sua sede insana e desmedida.

Hão de curar-se as chagas e as cem feridas.
Das dores todas, flechas transparentes
Transpassarão a alma dos mundanos.

02 agosto 2008

Soneto dos vaga-lumes (Waldemar Lopes)



Era o impúbere céu, era a anteaurora
translúcida. Na meia-luz contida
de súbito se abria, aura sonora,
a flor do canto, logo emurchecida.

Mas no chão da memória surge agora,
de matérias do tempo concebida,
visão morta da noite feita aurora
(e uma vida fundida noutra vida).

Chispas de azul verdefosforescendo
trazem à solidão da terra acesa
o secreto esplendor da alma apagada.

Ritmo de lume e cor, nascem morrendo,
enquanto cresce –tensa de beleza,
madura de silêncio – a madrugada.

31 julho 2008

Muros (Konstantinos Kaváfis)


Sem cuidado nenhum, sem respeito nem pesar,
ergueram à minha volta altos muros de pedra.

E agora aqui estou, em desespero, sem pensar
noutra coisa: o infortúnio me depreda.

E eu que tinha tanta coisa por fazer lá fora!
Quando os ergueram, mal notei os muros, esses.

Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora.
Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse.

(tradução de José Paulo Paes)

Debaixo do Tamarindo (Augusto dos Anjos)




No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos.

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!

25 julho 2008

Poesia V


"Ninguém ignora que a poesia é uma solidão espantosa,
uma maldição de nascença, uma doença da alma."
Jean Cocteau

Poesia IV

"A poesia não tem presente: ou é esperança ou saudade."

Camilo Castelo Branco

21 julho 2008

Fotografias


Nós pairamos, em fotografias,
Como se suspensos e eternamente congelados.
Pairam impressas, no papel retangular,
Memórias e lembranças de um passado.
Fotografias vivas em adornos crespos,
Em preto e branco, em sépia, em cinza.
Nos álbuns de família, registradas.
Festas, casamentos, nascimentos...
Viagens, almoços e aniversários.
Mas faltam folhas de papel vegetal
Entre uma foto e outra.
Hoje, tudo é digital.
Ninguém mais abre as portas
Da velha estante de madeira nobre,
E dentro de enormes caixas,
Revira e volta a reviver a vida
Em folhas soltas de desbotado brilho.
Ninguém mergulha mais
Naquelas caixas abissais
Que na minha infância,
Nas minhas investigações de criança,
Lançavam luzes sobre os meus avós.
E elas seguem em tenebrosa sombra,
Lutando contra o esquecimento e a umidade,
Aguardando que um dia, quem sabe?,
Algum bisneto as venham resgatar

Poesia III


"Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo."

John Keats

Poesia II


"A poesia é tudo o que há de íntimo em tudo."
Victor Hugo

Imagem: Eros e Psiquê - Gérard, 1798 Musée du Louvre, Paris

Poesia I


"Sempre se admitiu que a poesia participava do divino porque eleva e arma o espírito submetendo a aparência das coisas aos desejos da alma, enquanto a razão constrange e submete o espírito à natureza das coisas."

Fonte: Francis Bacon em "O Progresso do Conhecimento"

10 julho 2008

Minhas Faltas

Que falta eu sinto de tudo...
De tudo que não vivi.
Saudades de um tempo perdido;
Que falta tu fazes em mim
Que falta no mundo de hoje?
Num tempo em que ninguém faz falta,
Eu canto, sentido, a minha;
Que falta tu fazes em mim.
Não vou abraçar madrugadas
Nem transbordar o teu vinho.
Não vou apontar estrelas
Nem renovar meus carinhos.
Num canto a minha alma vagueia,
E ninguém mais pode sentir,
Na solidão sonora e silente,
Que falta tu fazes em mim.

11 janeiro 2008

Carambola

Lanço-te meu beijo
Como um pássaro tonto
Nos torvelinhos de uma tempestade.
Lanço-me em teus braços
Em espirais de desejo,
Tonto de saudade.

Ergo-me sem esperanças
Na vívida hora dos sonhos
A espreitar tua vontade.
Doce, lânguida e fremente
Senhorita dos moinhos,
Vento da minha liberdade.

Menina esperta e formosa,
Beleza de ave, morena.
Negros cachos de eternidade.
E eu, cavaleiro andante,
Sofro atrás desses passos
Por toda essa mocidade.

Sigo o sabor carambola
Na boca que arde, e demora
Na longa hora que invade
O meu sonho de infante.
Da menina que segue faceira
Fugindo de mim só por maldade.

07 janeiro 2008

A Visita



Fechou-me a solidão como mortalha,
Fazendo paralíticos os meus sentidos.
Num negro e vasto limbo de amarras
Abateram-se sobre esses ombros lisos,
Fardos, pesos soltos a reabrir as chagas.
A Depressão, silenciosa Dama dessas horas,
Minha visita no corredor das madrugadas,
Que se por acaso me encontra entorpecido,
No leito sujo, quase adormecido
Por sobre pilhas de livros, cantando
Uma história que não conto agora,
É porque é uma velha conhecida
A visitar o paciente desse quarto.
Mas não traz sopas nem ungüentos
Só a Solidão em pratos rasos.
E como lhes transbordam os lamentos
Ao sabor acre daquela tirana senhora
Espreitando-me ao pé da cama
E aguardando a minha morte
Que não chega, mas também não tarda.

Afasta-te de mim, madame peçonhenta!
Segue o teu caminho atormentando os mortos!
Arranca do meu peito essa dor cinzenta!
Afaste-te, sorrateira, dessas cobertas coloridas,
Pois vejo tuas intenções acobertadas
Na ironia maligna desse teu riso tísico
E no dedilhar desses teus dedos tortos.
Chagas, dores, febres, cem feridas
E esse cheiro nauseante de enxofre
Que se espalha pelo espaço físico.
Será o meu martírio, será o meu açoite
Esperando enganar meu medo hirto
Do enganador que me aguarda?
Cheiro pútrido, odor embolorado,
Fumega a carne, o fogo não se apaga,
E eu aqui fitando as fuças do Diabo.
Socorre-me, longa e ingrata madrugada,
Por que não trazes logo a luz do dia?
Por que não me adormeces mais?
Por que tenho que ficar na companhia
Da Solidão, da Depressão
E desses seres infernais?

03 janeiro 2008

Temporal

Dai-me essa água clara
Dos céus tombada,
Água das tardes de verão
Que me encontram agora.
Dai-me mundos,
Céus escuros e trovoadas
E essa torrente de água
Encantada, faíscas prateadas
Sob a luz da minha cidade.
Dai-me esses sons rolantes,
Pingos em castatas
Sobre telhas de argila, zinco
E amianto,
Dai-me esse pranto
Próprio dos salões da igreja,
Testemunhas do retalhar nos vitrais.
Dai-me a certeza da chuva que cai
Em tardes quentes de mormaço
Que recolhe os passarinhos,
Mas liberta as crianças
Nas poças d’águas,
Meias encharcadas,
Gargalhadas de moleques,
Ventos repentinos,
Pipas para sempre perdidas,
Infância brevemente reencontrada.