27 agosto 2008

Janela das Lágrimas


Para lá dos montes afastados havia outro mundo, um mundo temeroso
GRACILIANO RAMOS

Deixei a luz fosca daquele luar
Na curva do rio que embalava meu sono.
Na esteira de estreitas estradas
Pisei as folhas cadentes do outono.

Deixei um mundo sem paz e sem dono,
E meus pés, levantando a poeira,
Deixaram um choro pungido
Sob um teto sem eira e nem beira.

Pra trás, as velhas casas da aldeia,
As poucas taipas caiadas de branco.
Levei comigo uma dor escondida
Pelo rio sem calado e barranco.

E o rapaz daquele desejo franco
Seguiu a pintar sua nova aquarela
Sem lembrar das lânguidas lágrimas
Debruçadas em uma seca janela.

Nem se voltou ao cruzar a capela;
Afastado da luz de seus olhos castanhos,
E levando nos dele só um opáco vazio
Sobre um peito marcado de lanhos.

Se da janela, voltada aos rebanhos,
Das amargas lágrimas brotar a semente
Da saudade daquele amor que se foi,
Eu peço ao meu Deus tão somente

Que a dor desse corte se ausente,
E que a flor que secou por meus planos,
Floresça na terra frondosa,
Diferente da lívida rosa dos últimos anos.


22 agosto 2008

A Folha Seca


Se hoje oscilo como a folha morta
Que do galho pendeu e se perdeu
Em rodamoinhos poeirentos,
Em espirais nos lixos de um beco.
Se tudo em mim é confuso
E o meu coração nada sente,
E minha mente não se decide
Entre a calma e o tumulto.
Se minha sede não se esgota
E o medo ronda a minha porta
Num temerário “é o fim de tudo”.
Se minh’alma anda aos tropeços,
Aos soluços num choro entrecortado
Que sem palavras me deixam mudo,
Caminhando, pelas noites, sem paz,
Perseguindo uma ilusória alvorada.
Se é de frio que me cortam
As lâminas de uma solidão povoada
Ou se são tolices e nada mais.
Quem se importa?
Os que não se importam comigo partiram,
E se os que me importam voltassem
E me dessem o diamante de seus olhares,
Ainda assim eu seria a folha agarrada ao galho.
Ao galho seco da árvore, da vida,
Aguardando o vento derradeiro
Que me libertaria pelos ares.

11 agosto 2008

Infância e Temporal


“Menino à Janela” – Murillo, Galeria Nacional de Londres



Grades de ferro e temporal.
E eu olhava o mundo da janela
Embaçada pela minha respiração.
Lá fora, o céu cinzento.
Lá dentro, solidão de menino
Vendo as pessoas correndo da chuva,
Tentando um abrigo sob as marquises.
Quanta tolice!, eu pensava...
Quando o que eu mais queria
Era correr com o vento.
E a praia logo ali como um convite,
E o mar em ondas me chamando,
Sucessivas vezes quebrando
Meu nome e sobrenome sobre as pedras.
Mas eu ali, preso e casto, pois
Nem uma gota de orvalho maculara
O desejo por detrás daquelas grades.
Riscos de fogo pelo céu invadem,
E conto o tempo entre clarões e trovões,
Agarrado ao leme do meu návio-janela
Mãe, solta-me na chuva, por favor.
Ser criança é um temporal de fim de tarde...
Imaginação que urge e arde,
E quando se dá conta já passou.

10 agosto 2008

Pai

O que eu diria ao meu pai no dia de hoje
Se em tantos anos nada nos falamos,
Se em tanto tempo nada encontramos
Que nos aproximasse como pai e filho?
E nesse dia o que eu daria a ele
Se nunca soube de seus gostos ou os livros que lia,
Se nunca vi seu pranto ou o motivo da alegria?
Ele que nunca viu meus presentes da escola.
Eu que nem lembro se os fiz um dia.
Ele que nunca viu meu choro ou medo ou frio.
Eu que nunca ouvi de sua voz bronca ou euforia.
Ele que por toda minha vida passou calado.
Eu que por dentro tremia sem entender o porquê.
E nesse dia que encontra em festa
Famílias inteiras e mesmo famílias partidas,
Eu penso no pai que nem sei se realmente tive,
E busco a lágrima que não rolou dos meus olhos

E o soluço que não brotou no meu peito
Pelo pai que se foi como se nunca tivesse chegado.
Sem saudades nem mágoas,
Eu penso na minha vida, para ele perdida,
Por nunca ter estado ao meu lado.

06 agosto 2008

Campos dos Goytacazes


Nem sabes mais como me encontro agora
Nesses tempos tortos em que no mundo afora
Tantos vagam no tempo sem lembrar memórias,
Doces ou saudosas passagens simplórias.
Chama-me agora pelo nome que bem queiras.
São fagulhas soltas, cinzas em poeiras
Que voam cintilando pelos céus de novembro,
Cruzando estradas que hoje nem me lembro,
Mas que sempre estiveram sob meus pés de criança.
Recordações, campos amplos, ampla lembrança.
Do cheiro doce da cana espremida,
Do açúcar, dos treminhões, da velha ermida
Do caminhar a beira da estrada
Ás orações de domingo à madrugada.
São sons de pássaros, estridentes pequeninos.
São sons de gritos, algazarra de meninos,
Que ouço todos no espaço do meu quarto,
Enquanto conto contas, farto
Desses dias que já se vão iguais
Sem poesia, infrutíferos, banais.
E se agora, ao rever esses barrancos,
De um gado enfileirado em pontos brancos,
Voltarem aqueles sonhos incapazes?
É só pra ver de novo os amplos Goytazes,
Os campos verdes debruçados na cidade
Que eu amei em uma outra idade.

Poesia VII

Deus, que nos fizeste mortais,
porque é que nos deste a sede
de eternidade de que é feito o poeta?

Luis Cernuda

Poesia VI

"O historiador e o poeta não se distinguem um do outro pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso. Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido."

(Aristóteles)

05 agosto 2008

Amor Imperativo


Sei que no início era o Verbo
Num crescente ritmo constante,
Antes do futuro e desse instante,
Nascendo do passado que herdo.

Sabes também que não te espero
Cruzar por um caminho mais distante,
Enfrentar o frio, fio de prata cortante,
E seguir o rumo que eu mais quero.

E esse nosso amar-amei-amamos,
Verbo que tantas vezes conjugamos
No presente e pretérito do indicativo,

Guardado no peito, e que desta feita,
Sempre te encontrou mais-que-perfeita,
Continua me achando imperativo.

04 agosto 2008

Caninos



Em louca hora eis que se atravessa
Em seu caminho tão perigosa fera,
A farejar o mundo, rasteiro e em pressa,
Riscando o chão com o elo que a acolera.

E vai bufando, a baba nos caninos,
Sem sentimento ou pena ou dor.
Se põe a brincar entre os meninos;
Fera obtusa que, em seu fétido odor,

Escarnece desse sangue de inocentes
E mastiga os valores mais humanos
Em sua sede insana e desmedida.

Hão de curar-se as chagas e as cem feridas.
Das dores todas, flechas transparentes
Transpassarão a alma dos mundanos.

02 agosto 2008

Soneto dos vaga-lumes (Waldemar Lopes)



Era o impúbere céu, era a anteaurora
translúcida. Na meia-luz contida
de súbito se abria, aura sonora,
a flor do canto, logo emurchecida.

Mas no chão da memória surge agora,
de matérias do tempo concebida,
visão morta da noite feita aurora
(e uma vida fundida noutra vida).

Chispas de azul verdefosforescendo
trazem à solidão da terra acesa
o secreto esplendor da alma apagada.

Ritmo de lume e cor, nascem morrendo,
enquanto cresce –tensa de beleza,
madura de silêncio – a madrugada.