29 abril 2007

À espera dos bárbaros (Konstantinos Kaváfis)



O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

28 abril 2007

Canção Outonal (Federico Garcia Lorca)




Hoje sinto no coração
um vago tremor de estrelas,
mas minha senda se perde
na alma de névoa.
A luz me quebra as asas
e a dor de minha tristeza
vai molhando as recordações
na fonte da idéia.

Todas as rosas são brancas,
tão brancas como minha pena,
e não são as rosas brancas
porque nevou sobre elas.
Antes tiveram o íris.
Também sobre a alma neva.
A neve da alma tem
copos de beijos e cenas
que se fundiram na sombra
ou na luz de quem as pensa.

A neve cai das rosas,
mas a da alma fica,
e a garra dos anos
faz um sudário com elas.

Desfazer-se-á a neve
quando a morte nos levar?
Ou depois haverá outra neve
e outras rosas mais perfeitas?
Haverá paz entre nós
como Cristo nos ensina?
Ou nunca será possível
a solução do problema?

E se o amor nos engana?
Quem a vida nos alenta
se o crepúsculo nos funde
na verdadeira ciência
do Bem que quiçá não exista,
e do mal que palpita perto?

Se a esperança se apaga
e a Babel começa,
que tocha iluminará
os caminhos da Terra?

Se o azul é um sonho,
que será da inocência?
Que será do coração
se o Amor não tem flechas?

Se a morte é a morte,
que será dos poetas
e das coisas adormecidas
que já ninguém delas se recorda?

Oh! sol das esperanças!
Água clara! Lua nova!
Coração dos meninos!
Almas rudes das pedras!

Hoje sinto no coração
um vago tremor de estrelas
e todas as coisas são
tão brancas como minha pena.

Federico Garcia Lorca, Novembro de 1918. (Granada)

25 abril 2007

Legítimo?

JORNAL DO BRASIL de 23Abr2007
Ubiratan Lorio, economista

Desde criança, sempre desejei um piano Steinway & Sons de cauda inteira, cujo valor equivale ao de um bom apartamento de três quartos na Zona Sul do Rio. Um instrumento maravilhoso e uma aspiração legítima, mas nem por isso vou encostar um caminhão na porta de uma loja musical e, ajudado por meia dúzia de companheiros da musculação, levá-lo para casa, pois estarei infringindo a lei, por ferir o direito de propriedade estabelecido constitucionalmente.

Onde não se respeita esse princípio - que, ao lado dos direitos à vida e à liberdade, é basilar na sociedade - a lei do mais forte passa a regular as relações pessoais: Brederodes é um sem-mulher e deseja casar-se - o que é legítimo - e, como é forte, não há problema, rapta a noiva de Xerxes, que é fraco; Pafúncio não tem cabelos, mas desejaria tê-los - o que também é legítimo - e, sendo assim, avança sobre Menelau e, tesoura nas mãos, tosa-lhe a vasta cabeleira; Criméia gostaria de usar os perfumes franceses de Cremelinda e, como seu desejo é legítimo, rouba-os. Imaginem que tipo de sociedade seria resultante de uma visão torta desse tipo.

É claro que o desejo de possuir um ótimo piano, de casar-se, de ter cabelos e de usar bons perfumes, como de resto o de ter a posse de um bem qualquer, é legítimo, mas o que importa não é isso, porém a forma como esse desejo se realiza. Roubar ainda é crime.

No entanto, no país do faz-de-conta em que o Brasil está transformado - uma autêntica terra sem lei - se os pianistas, Brederodes, Pafúncios e Criméias conseguirem organizar os que possuem suas mesmas aspirações em "movimentos sociais", terão respaldo do governo, que "legitimará" os delitos que cometerem e ainda por cima colocará a culpa nas "elites", nos "ricos" e - naturalmente - no "neoliberalismo excludente".

Claro, nas cabeças povoadas de minhocas de muitos dos que teriam obrigação de zelar pelo cumprimento da lei, Brederodes não tem noiva porque Xerxes, que pertence à "elite", o impede; Pafúncio é careca porque Bush arrancou-lhe os cabelos e Criméia não pode comprar perfumes de grife porque é "explorada" pela perua Cremelinda...

Tais considerações vêm a propósito de três fenômenos impensáveis em uma sociedade onde se preza a lei, mas que vêm sendo não apenas tolerados como - o que é um verdadeiro crime - incentivados, mesmo que por omissão, por nossas autoridades.

O primeiro são as invasões aos montes perpetradas pelos ditos "sem-teto" em diversas grandes cidades brasileiras, sob a bênção da secretária nacional de Habitação, que as qualificou como "legítimas". Sim, segundo a referida ministra - "heroína", "não pode haver gente sem moradia num país onde outros têm imóveis demais"... Ora bolas, penso que, ao invés de dizer abobrinhas (estragadas) como essa, seu papel seria o de construir habitações populares e, caso o ministro da Fazenda lhe negasse os recursos para tal, o de pedir o boné e largar o cargo, por simples imposição do que conhecemos, há séculos, como dignidade.

O segundo é o nosso Largo do Boticário, tombado pelo Patrimônio Histórico e Cultural, que está com uma de suas casas invadida há um ano por dezenas de "sem-teto", que se mostraram também sem-vergonha, ao tentarem organizar uma festa rave cobrando ingresso, no que foram impedidos pela polícia. Por que o governo do Rio ainda não os expulsou de lá? Como, caro leitor, você dirá, levá-los para onde? Ora, não existe uma Secretaria de Habitação, recheada de políticos e apadrinhados, encarregada exatamente de resolver problemas graves como esse?

Por fim, temos as invasões dos arruaceiros "sem-terra", engolidas e até estimuladas pelo governo e por pseudo-acadêmicos marxistas. A "função social da terra" é uma filigrana jurídica, um arabesco redundante: galinhas, vacas, porcos, jacas, açaís, eleitores, professoras, cidadãos, clubes de futebol, médicos, tudo, enfim, o que existe na sociedade tem uma "função social"...

Madonna mia, ser brasileiro tem sido um permanente e exaustivo exercício de paciência!